O site oficial do Clube desafiou um dos jogadores mais antigos da equipa sénior de Rugby, Salvador da Cunha, para uma conversa em torno da modalidade, da secção e da sua longa experiência com a Cruz de Cristo ao peito.

Salvador, muitos sócios e adeptos do Belenenses que não acompanham o dia-a-dia da equipa de Rugby não te conhecem. Podes por favor apresentar-te?
Chamo-me Salvador da Cunha, nasci em 1986 e sou o décimo primeiro de uma irmandade de doze homens. Sou licenciado em Engenharia Agronómica, especializado em manutenção de campos de golfe na Carolina do Sul, através da Universidade do Ohio, mas já não trabalho nessa área. Actualmente, trabalho na PURA (Produtos Únicos Regionais Agrícolas), empresa de distribuição de produtos agrícolas da qual sou sócio e gerente.

Sempre jogaste no Belenenses. Como é que vieste para o Belém e porque razão escolheste o Rugby?
Comecei a jogar Rugby aos sete anos no Belenenses, seguindo o rumo natural da família, onde dez dos doze irmãos jogaram ou jogam. Tive a honra de ter sido chamado para representar Portugal nas diversas selecções nacionais de formação desde os meus 16 anos, sendo que o nível mais alto em que joguei foi na Selecção Nacional de “Sevens”, no circuito da IRB, por três vezes. Ainda tive a sorte de fazer parte do grupo de jogadores da Selecção Nacional de XV onde nunca consegui ser chamado para representar Portugal. Durante um período em que estive em formação em Inglaterra, joguei em Londres, no Roslyn Park, e no Richmond. Joguei também por convite na selecção de Steele-Bodjer e Major Stanley contra a Universidade de Cambrige e Oxford respectivamente. Enquanto estive nos Estados Unidos, na Carolina do Sul, joguei durante uma época no Hilton Head Rugby. Joguei também por convite nos Pinguins RFC.

Jogas na posição de terceira linha (n.º6). Como explicarias a quem não está familiarizado com o Rugby qual é o papel no jogo de um “terceira-linha”?
Uma equipa de rugby joga com quinze jogadores em campo. Ao contrário do futebol, os números dizem respeito às posições, sendo que cada equipa começa um jogo numerada de 1 a 15. Os oito primeiros números correspondem aos avançados, homens encarregues do “jogo duro”, das fases de conquista como o alinhamento (touche), formação ordenada (mêle) e, mais frequentemente, envolvidos nas formações espontâneas (ruck). Os três quartos têm números do 9 ao 15, cabendo-lhes capitalizar o esforço dos avançados em pontos. A terceira linha são os 3 jogadores mais móveis dos avançados detentores dos numeros 6, 7 e 8. De uma forma simplificada, a terceira linha está encarregue dos seguintes trabalhos: garantir a posse de bola nas fases estáticas (saltar, levantar na touche e empurrar na mêlée), ligação defensiva entre os avançados e os três quartos, recuperações de bola (turn over), transporte de bola para perfurações na defesa adversária e, acima de tudo, têm a responsabilidade de inibir o ataque do adversário com placagens.

Tiveste a oportunidade de jogar lado a lado na equipa principal do Clube com os teus irmãos António, André, Francisco e Sebastião. Que importância tiveram os teus irmãos no teu Rugby e na tua forma de ver o Clube?
Jogar com os meus irmãos no Belenenses foi, desde sempre, a maior motivação que tenho desde o dia em que comecei a jogar. Desde sempre que quis ser como eles e a minha principal motivação foi que estivessem orgulhosos dos meus desempenhos. No Rugby, uma equipa só é bem-sucedida quando todos fazem exemplarmente o seu trabalho dentro de campo. Normalmente, um indivíduo não consegue mudar o rumo do resultado sozinho. Quando estamos com um irmão dentro de campo parece que há um compromisso ainda maior para fazermos os nossos trabalhos com distinção. Se não queremos falhar com um companheiro de equipa, muito menos queremos falhar com um irmão. Gera-se então uma motivação extra em que, a certa altura, a competição já é entre os irmãos, vendo quem faz mais estragos na equipa adversária. Claro que se jogar com um irmão (ou mais) é uma maravilha, a cereja no topo do bolo é poder fazê-lo com a camisola do nosso Belém, Clube que significa tanto para nós lá em casa. Dos doze irmãos, os únicos que ainda jogam hoje em dia são o Francisco, em Londres (Themisians) onde vive com a família, o Sebastião e eu no Belenenses. A idade já está avançada e entre trabalho e família, bem ou mal, vamos conseguindo estar presentes, não tendo garantias de que o consigamos fazer por muitos mais anos. Apesar de tudo, parece que já temos a solução para que os adversários do Belém não deixem de ver as caras dos Cunhas: nas Escolas de Rugby do Belém estão em desenvolvimento vinte e cinco descendentes homens que chegarão a seu tempo para reforçar a equipa sénior e assumir esta honra e este compromisso de elevar o nome do Belenenses.

Tivemos a oportunidade de assistir à tua estreia na equipa principal do Belém. Lembraste desse dia? Como foi o teu percurso no Rugby sénior do Belenenses desde esse dia?
Estive no plantel da equipa sénior no ano de 2005/2006 tendo sido relegado para a equipa de juniores, tamanha era a competitividade para a minha posição. Na pré-época de 2006/2007 fiz das tripas coração para ter finalmente uma oportunidade. Acabei por me estrear a titular pela equipa sénior do Belém na primeira jornada do campeonato contra a Agronomia no Estádio do Restelo. Um dia memorável. Depois desse dia, o frenesim de jogar mais foi uma constante. Queria fazer parte do núcleo duro de jogadores seniores, não importando as dificuldades desse objectivo. Fomos campeões em 2007/2008 tendo tido a honra de ser titular a número 7 na final. Depois disso perdemos uma final do campeonato, três meias-finais do Campenato e também uma final da Taça, não tendo conseguido mais títulos pelo Belenenses.

Tiveste a oportunidade de ser campeão nacional sénior de Rugby de XV em 2008 e integraste uma grande equipa que, pouco depois, esteve à beira de repetir o feito. Depois o Rugby azul iniciou uma fase de renovação, e tu tens sido – a par de outros jogadores campeões, como o João Mirra (treinador), Miguel Fernandes ou o Diogo Miranda – um elo de ligação entre o passado e o futuro do nosso Rugby. Como vês o presente e o futuro do Rugby do Belenenses?
A minha principal prioridade continua a ser jogar, divertir-me e ganhar títulos com a camisola da Cruz de Cristo. Depois, como parte dos mais velhos, tenho a incumbência de passar aos mais novos os valores do Clube. Tentar que as gerações mais novas tenham a ambição e a dedicação que me foi exigida quando cheguei aos seniores, para que também eles possam passar esses valores às gerações seguintes. Houve de facto uma fase de renovação, não sei se não chamaria mesmo de crise nos seniores do Clube. Hoje, olhando para trás, vejo de facto alguns caminhos que considero como menos felizes na filosofia de gestão da secção, não querendo julgar de forma alguma a ambição e a boa vontade de quem os tomou. A meu ver, a gestão do clube pecou em dois pontos que considero preponderantes para a crise que temos passado: o investimento desmedido em estrangeiros, que se reflectiu negativamente em desmotivações e em desistências de várias gerações que, neste momento, seriam o pilar da equipa sénior; e por outro lado, a decisão de começar a remunerar jogadores da prata da casa (ou não). Assim que houve instabilidade financeira foram os primeiros a virar as costas ao clube. Também tivemos oportunidade de assistir a uma série de traições de alguns jogadores, incluindo ex-capitães. Alguns transferiram-se para clubes rivais por exigirem que o Belenenses arranjasse empregos com remunerações de X ou de Y, e outros por dinheiro. Acontecimentos que vieram dificultar ainda mais a vida do nosso Belenenses, deixando um sabor amargo aos que ficaram a aguentar o barco. Contudo, o trabalho desenvolvido nos últimos anos tem sido muito agregador. O ginásio está cheio de uso. Apesar da enorme diferença de idades há um enorme equilíbrio entre os mais novos e os mais velhos. Começamos finalmente a ter várias opções por posição, o que aumenta a competitividade interna melhorando os jogadores e sobretudo a equipa. Se o ritmo se mantiver, na minha opinião vamos no bom caminho para trazer o Belém de volta ao topo onde vai ficar durante vários anos.

O Rugby do Belenenses está prestes a concretizar o sonho de passar a ter um campo totalmente dedicado à modalidade. Que importância terá o “Belém Rugby Park” para a secção? Temes que esse distanciamento físico relativamente ao Restelo possa distanciar o Rugby do resto do Clube?
É sem dúvida um feito incrível da secção de Rugby do Belenenses. Deixa-nos a todos impressionados a dedicação dos homens da casa que estão por detrás disto tudo e que conseguiram este milagre. Sabes que há 24 anos que comecei a jogar e que oiço todos os dias que vamos ter um campo para o Rugby. Claro que, com o tempo, aprendi a desvalorizar a notícia porque por uma razão ou por outra ficava sem efeito. Sei que é um facto já muito mais presente do que há 24 anos, mas para ser sincero só acredito quando o vir. Espero que ainda tenha saúde para poder jogar lá pelo nosso enorme emblema. Seria uma honra muito grande. Finalmente, vamos deixar de ser nómadas e de estar dependentes da boa vontade do Futebol para podermos jogar em casa. Para nós, jogadores, é uma incrível motivação a de podermos começar a escrever história à volta da nossa nova casa. Esperamos que esta motivação seja comum a todos os atletas das escolas do Clube. Não concordo que distancie, antes pelo contrário. Sempre que um adepto do Clube, hoje em dia, quer ver um jogo da equipa sénior do Belém, tem que procurar em três campos diferentes. Quando o nosso campo estiver pronto vai passar a saber perfeitamente onde se dirigir para nos encontrar. No fundo estamos todos de parabéns e no fim do dia é mais um ponto onde o Belenenses vai poder estar em acção, não pode haver nada de mal nisso, certo?

E para o ano (temporada 2017/2018), vamos continuar a ver-te a placar forte e feio com a camisola azul?
Conto jogar até ao dia em que fisicamente não consiga mais ser útil. A satisfação e a alegria de jogar Rugby continua demasiado grande para ponderar parar. Espero que a próxima época ainda não seja a véspera da época em que vá deixar de jogar. Viva o Belém!