Face às tristes assistências que o Estádio do Restelo vem registando, não falta quem tente dar a entender que foi sempre mais ou menos assim. Não é verdade, longe disso.

Muitas vezes vimos grandes enchentes no nosso Estádio e, mesmo em jogos com equipas que praticamente não trazem adeptos, assistimos inúmeras vezes a um Estádio do Restelo muito bem composto.


Não obstante, existe um mito de que o Estádio do Restelo nunca esgotou a sua lotação. Mais uma vez é falso. Há provas documentais de que esgotou e a primeira vez que tal aconteceu foi, exactamente nesta data.

Tratava-se um jogo com o Benfica, que gerou enorme expectativa e que provocou ainda maior celeuma, pelas razões que adiante referiremos.


Como dissemos, existem provas documentais do Estádio do Restelo ter esgotado. Neste caso, recorremos à edição (na altura semanal) do jornal “Os Belenenses”, nº 266, de 6 de Fevereiro de 1959, no qual, em artigo publicado na página 6, podemos ler:

“O Belenenses – Benfica foi o grande caso desportivo da última semana.
O entusiasmo do público afecto aos DOIS GRANDES CLUBES, à medida que o domingo se aproximava, atingiu o auge. A procura de bilhetes pôs em delírio os amantes da bola.
O pequeno rectângulo de papel tomou foros de lendário tesouro. Verdadeira luta de emoção de nervos e até de factos.
Tentava-se o apelo ao amigo, faziam-se valer conhecimentos antigos e modernos, tudo para que o tal papelinho deixasse de ser sonho para se tornar em feliz realidade. E, quando conseguido, era guardado, religiosamente, no fundo da carteira.
Todos queriam mais um bilhete; todos desejavam presenciar a luta dos dois grandes contendores.

E surgiu o inevitável. OS BILHETES ACABARAM.
Na secretaria do nosso clube a azáfama foi constante.

Manuel Vacondeus estava extenuado (…). Pensamos ser interessante ouvir as declarações deste antigo e competente funcionário de ‘Os Belenenses’ (…).
– Naturalmente que o senhor tem tido um trabalhão com este jogo, não é verdade?
– Como pode calcular! Creia, no entanto, que não é o trabalho excessivo que me tem preocupado, pois eu estou aqui para servir o clube e não para descansar. Aquilo que, na verdade, me preocupou e me fez bastantes dores de cabeça foi A IMPOSSIBILIDADE DE PODER SERVIR TODOS OS SÓCIOS.
– MAS OS BILHETES NÃO CHEGAM PARA OS SÓCIOS?
– NÃO. OS BILHETES QUE NOS CABEM NÃO SÃO SUFICIENTES PARA SERVIR TODOS OS SÓCIOS. Além disso, há aqueles que desejam um número superior àquele que tínhamos estipulado, que era de dois a cada sócio (…).
– A afluência para o encontro de domingo foi na verdade fora do normal?
- Sim, e a justificar essa verdade está o facto de, pela primeira vez, O NOSSO ESTÁDIO SE ESGOTAR”.


Cabe aqui lembrar que, na altura, com as bancadas sem cadeiras, com o Topo Sul aberto ao público – como sempre esteve até recentemente – e o anel superior do Topo Norte a servir de peão, a lotação do Estádio era de 44.000 espectadores.


Para que não restem dúvidas, reproduzimos ainda a nota constante da página 5 do jornal “A Bola” de 2 de Fevereiro de 1959, com o título “566 CONTOS DE RECEITA!”:

“Como dissemos no sábado, o jogo Belenenses – Benfica despertou extraordinário interesse e a lotação do Estádio do Restelo esgotou”. E discriminava em seguida as seguintes vendas de bilhetes:
14.000 Gerais (Peão na parte superior do Topo Norte);
7.850 Superiores (Topo Sul e resto do Topo Norte);
4.426 Bancadas Centrais (Anel superior da Bancada Poente);
4.394 Bancadas Laterais (Anel inferior da Bancada Poente);
271 Senhas de Camarote;
150 bilhetes de menores e militares.


Isto somava 31.091 lugares. Acresciam, pois, cerca de 13.000 bilhetes de sócios ou seus acompanhantes (então, ao contrário de hoje, ocupando a Bancada Nascente e só parte da Poente).


Registe-se que, naqueles tempos, não acontecia o que sucede hoje em dia nos jogos com o Benfica em que, fora dos sectores dos sócios, cerca de 80% ou 85% dos assistentes são afectos ao Benfica. Na altura, a proporção de adeptos azuis era bastante superior. Naquele jogo, certamente a maioria do público era belenense.

Uma enorme multidão afluiu, pois, ao Restelo, apesar do autêntico dilúvio que se verificou nesse Domingo.


O jogo era bastante importante porque Belenenses e Benfica, juntamente com o F.C.Porto, lutavam palmo a palmo pelo título.


Antes desta 19ª das 26 jornadas, o Benfica liderava com 30 pontos, seguido do Belenenses com 27 e do F.C. Porto com 26. O Vitória de Guimarães tinha 21 e o Sporting, 20.


O Belenenses não teve um bom começo. Ganhou em casa 3-0 à CUF mas foi perder por igual marca a Guimarães. Seguiram-se dois empates: 0-0 no Restelo contra o Caldas e 1-1 em Coimbra. Vencemos depois o Covilhã por 6-0 no Restelo mas fomos seguidamente perder 3-2 a casa do Benfica e empatar 0-0 em casa do Torreense. Depois desse começo irregular, o Belenenses começou a carburar e foi-se aproximando do Benfica, que liderou durante muito tempo. O F.C.Porto, curiosamente, também não começou bem. O Sporting esteve praticamente sempre fora da luta pelo título. O Vitória de Guimarães, pelo contrário, teve um excelente começo e andou algumas jornadas em segundo lugar.


Em Dezembro e Janeiro, porém, o Belenenses colocou-se na 2ª posição, a um escasso ponto do Benfica, apesar dos erros dos árbitros a fustigarem-nos na derrota na Luz, nos empates fora com o Torreense (ver gravura da bola com comentário insuspeito de Carlos Pinhão, um benfiquista assumidíssimo) e em casa com o Caldas (em ambos os casos, foram-nos anulados golos sem motivo) e na derrota na Covilhã, justamente no jogo que antecedeu a recepção ao Benfica.


Esta derrota fizera-nos atrasar um pouco mas era consenso geral que o Belenenses era a equipa que estava a jogar melhor. Uma vitória voltaria a colar-nos ao Benfica, neutralizaria a derrota por 3-2 na Luz (no jogo da 1º volta) e dar-nos-ia imenso moral.


Note-se a embalagem com que vinha o Belenenses: tirando a derrota na Covilhã, o nosso clube, nos 10 jogos anteriores, registara 9 vitórias e 1 empate. O empate foi em Alvalade, por 1-1. Em casa, ganhámos 1-0 ao Barreirense, 1-0 ao F.C.Porto, 3-0 ao Lusitano de Évora, 2-0 ao Vitória de Guimarães e 3-1 à Académica. Fora, ganhámos 2-1 ao Braga, 5-0 ao Vitória de Setúbal, 4-2 à CUF e 6-1 ao Caldas.


A equipa do Belenenses era mais leve e tecnicista do que a do Benfica. O estado do terreno prejudicava-nos, pois. E não se chegou a ser adiado o jogo, como se esperava face às condições atmosféricas que tornaram o relvado num autêntico lago.

Apesar da circunstância referida, o Belenenses atacou durante quase todo o jogo, em busca da vitória. Teimosamente, esta parecia escapar-se-nos. No entanto, em cima dos 90 minutos, a nossa equipa beneficia de um canto. Matateu marca-o directo e o Guarda-redes do Benfica (Costa Pereira) defendeu para dentro da sua baliza.


Levantam os braços os nossos jogadores, deixam-nos cair ou levam-nos à cabeça em desespero os do Benfica, festeja e rejubila o povo de Belém! Inesperadamente, o árbitro anulou o golo, sustentado que a bola tinha feito um arco, algo estranho, em que saíra do terreno e voltara a entrar.


Esta circunstância, e outras do jogo, vieram a provocar enorme polémica, com tomadas de posição fortíssimas dos responsáveis azuis, que talvez hoje surpreendessem e até chocassem a muitos…


O protesto apresentado pelo Belenenses, com exaustiva fundamentação, acabou por ganhar vencimento. No entanto, o jogo só veio a ser repetido a meio da semana antes da última jornada. O Belenenses já não podia chegar ao título – as arbitragens dos 5 jogos referidos (Benfica na Luz, Torreense, Caldas, Covilhã e Benfica no Restelo) tinham deixado mossas e contribuído decisivamente para nos afastar do troféu. Alguma desmoralização levou-nos até a claudicar 7-0 nas Antas ou a empatar em casa com o Torreense – embora, por exemplo, tivéssemos goleado o Braga por 7-0 e o Vitória de Setúbal por 9-1.

Nesse jogo de repetição com o Benfica, realizado em 20 de Março, registou-se um empate 1-1. Muito público, mais uma vez.


Escrevia-se na “Bola” do dia seguinte: “Não obstante se tratar de um dia de semana, o estádio do Restelo registou uma verdadeira enchente, que quase esgotou a sua lotação. Mesmo não constituindo record do recinto, não há dúvida que a receita verificada se cifrou em números impressionantes – cerca de 435 contos”.

Na classificação, Porto e Benfica ficavam com 39 pontos, o Belenenses com 36 e o Sporting com 31.

Na última jornada o Belenenses venceu o Sporting por 2-1. O Porto ganhou em casa do Torreense, o Benfica venceu a CUF na Luz. Já agora, foi a célebre ocasião em que o árbitro Inocêncio Calabote deu descontos, por alguns considerados excessivos, Luz, com o Benfica a somar golos e a quase anular o factor decisivo do campeonato, a favor do F.C. Porto, ou seja, o melhor goal-average.

Ainda hoje, os adeptos portistas, nas suas guerras com o Benfica, invocam o “escândalo” Calabote. Mas houve factos que, com o tempo, se foram deixando cair no esquecimento, com a tendência para só se falar de três clubes e para rescrever a história, ignorando o peso que o Belenenses teve nela. Mas a verdade é que, espoliado de 5 pontos nos jogos atrás mencionados, e tendo terminado 3 pontos atrás do campeão (ver tabela), o grande prejudicado deste Campeonato foi…o Belenenses!

JMA