A concepção vigente sobre o Belenenses, que o apresenta como um clube de que todos gostam e que nasceu na zona privilegiada do Restelo, enferma de gravíssimos erros históricos e factuais.
Em primeiro lugar, o Belenenses não nasceu no Restelo. Nasceu em Belém, então fundamentalmente um bairro pobre, e os seus fundadores e primeiros ídolos (“os rapazes da praia)” eram gente humilde, muitos deles simultaneamente jogadores e operários, como ainda há pouco vimos, a propósito de Pepe. O Restelo só se desenvolveu quando o Belenenses transformou uma pedreira abandonada e desolada que ninguém queria, e para lá da qual havia um deserto, num belo estádio. Só então vieram as embaixadas e tudo o resto, permitindo à Câmara de Lisboa fazer negócios fabulosos com a venda de terrenos numa zona para onde o Belenenses levou o “progresso”.
Em segundo lugar, o Belenenses teve um começo contrariado, hostilizado mesmo, pelos clubes, no caso lisboetas, já instalados, bem como pelos poderes já instituídos – alguma imprensa e a União Portuguesa de Futebol, antecessora da Federação Portuguesa de Futebol. Foi o ânimo indomável, a rebeldia, a vontade titânica de resistir e vencer dos nossos primeiros que conseguiu firmar o nosso clube, fazê-lo grande – imenso! – e acabar por se impor à consagração popular. Olhadas de soslaio, as gentes de Belém demonstraram a sua alma de lutadores mas temperada por uma nobreza de carácter que veio a granjear respeito – posteriormente chamado “simpatia”. E assim, surgiu a fidalguia de um clube eminentemente popular.
E a este propósito, não resistimos a reproduzir uma bela prosa sobre o nosso clube, dada à estampa numa edição do jornal Ecos do Sport, de Maio de 1927:
“Já nos referimos aos pombos que a rapaziada de Belém larga em pleno azul, após as suas vitórias. Hoje fazemos mais. Apresentamos o pitoresco duma fotografia em que se vê o popular Azevedo, findo o jogo com o Benfica, abrir as mãos e atirar para a imensidade a boa nova num pombo-correio que levava o amável segredo da vitória. Bilhete curto, de caligrafia comovida e nervosa, ele aí vai pelos ares fora, sobre o coração da ave, pronto a tornar-se em foguetes e vivas… Ganhámos! Uma palavra apenas, a saber a risos e lágrimas. A gente de Belém, à maneira antiga e desprezando os telefones, contenta-se assim, lá de longe, a olhar o céu atenciosamente…
Lá vem! Lá vem! Não, não é ainda… Às vezes são gaivotas vadias que vêm em raids por terra e iludem os que esperam…
Entardecera já. Ficara combinado largar um pombo ao primeiro golo e quando acabassem os noventa minutos, mas o céu ainda estava virgem das asas brancas da boa nova. Belém desesperava. O desafio estava dado como perdido. Todos se olhavam com tristeza. E quando, finalmente, com a sua fidelidade generosa, o pombo surgiu, ninguém queria acreditar.
Ganhámos! Ganhámos! Ganhámos!…
São assim os entusiastas do grupo da praia. Querem ao seu clube como se quer a uma pessoa de família. Amam-no e comovem-se com os seus triunfos. Choram e afligem-se com as suas derrotas. Quando acaba um jogo, em Belém há sempre lágrimas.
O Belenenses é um clube popular por excelência. O seu entusiasmo, sincero e comovedor – cheio de ingenuidade, talvez – é assim, enorme, parecendo um gigante de alma primitiva que envia pombos para os céus com a intenção de oferecer ao mundo inteiro as notícias das vitórias…”
A ilustrar tão notável texto, vinha a fotografia, aqui também reproduzida, de Eduardo Azevedo a lançar um pombo – Eduardo Azevedo, o Pai do nosso actual sócio com maior antiguidade, Humberto Azevedo.
E bom, voltemos à hostilidade com que o nosso clube se defrontou. Como em tantas outras ocasiões, damos a palavra a Acácio Rosa, que relata as circunstâncias que rodearam o primeiro de todos os jogos da Selecção de Portugal:
“Com vistas à preparação da equipa nacional que em 18 de Dezembro de 1921 jogou com a Espanha o primeiro desafio internacional, a União Portuguesa de Futebol convocou para os treinos, por intermédio da A. F. L., os jogadores do «Belenenses»: Artur José Pereira, Alberto Rio, Francisco Pereira e Fernando António.
Foi indigitado treinador da selecção o antigo médio-centro do C. I. F., Augusto Sabbo.
Em 17 de Novembro de 1921 é conhecida publicamente a Equipa que partiria para Espanha, a quaI era formada pelos seguintes jogadores:
Carlos Guimarães; António Pinho e Jorge Vieira; João Francisco, Artur José Pereira e Francisco Pereira; J. Gralha, Alberto Augusto; Jaime Gonçalves, José Rodrigues e Alberto Rio.
Mas, em face da opinião pública não ter concordado com esta formação, principalmente com a inclusão dos jogadores do Belenenses, os seleccionados Artur José Pereira, Francisco Pereira e Alberto Rio enviaram à A. F. L., em 21 de Novembro de 1921, a seguinte carta:
“Ex.mo Sr. Secretário GeraI da Associação de Futebol de Lisboa
Os signatários da presente carta, nomeados por essa Ex.ma Associação para fazerem parte do grupo nacional que deverá jogar no próximo dia 18, em Madrid, contra o grupo representativo de Espanha, vem junto de V. Ex.a muito respeitosamente, mas com o máximo empenho de que o seu pedido seja atendido, pedir escusa da referida nomeação.
Os motivos que para isso alegam são para Alberto Rio: o de doença que o impossibilita de treinar durante talvez muito tempo: para Artur José Pereira e Francisco Pereira: o conhecimento que têm de que a opinião geral desportiva recebeu com manifesto desagrado a sua nomeação.
Convencidos, portanto, de que com a sua substituição o grupo nacional ficará seguramente melhor, de que com a sua abdicação, assim, de alguma maneira contribuirão para uma melhor representação do país no estrangeiro: de que a opinião pública ao tomar conhecimento desta resolução, ficará tranquila, deixando portanto de ter apreensões a respeito do possível resultado do encontro Portugal – Espanha; convencidos ainda de que tendo durante várias vezes jogado em Vigo, Corunha, Bilbau, S. Sebastian, Barcelona, Madrid, Sevilha e Huelva, onde sempre representaram dignamente os seus clubes, poderiam naturalmente prejudicar a sua reputação pessoal fazendo uma má exibição, pedem a V. Ex.ª para serem substituidos no grupo nacional, não desejando figurar sequer como reservas.
Belém, 21 de Novembro de 1921
De V. Ex.ª, com subida consideração e respeito
Artur José Pereira
Francisco Pereira
Alberto Rio”
Portugal veio a perder esse jogo por 3-1.
No segundo jogo da Selecção Nacional (o Portugal, 1 – Espanha, 2) alinhou, então sim, Alberto Rio, co-fundador do Belenenses, que se tornou, pois, o nosso primeiro Internacional. Em 1929, o Belenenses tornou-se o clube com mais jogadores representados em todos os jogos da Selecção, posição que seguraria até 1935. Desde esse ano até 1951, manteve a 2ª posição nesse ranking, e conservou a 3ª posição de 1951 a 1957. Desde então até hoje, é o 4º clube mais representado.
JMA