José Manuel Soares Louro “PEPE” personifica a lenda, o mito, a magia, a tragédia e o sonho do Belenenses. Na sua breve existência, poucos, demasiados poucos, foram os anos que separam a sua ascensão e glória do seu desaparecimento, impedindo-nos de beneficiar dos muitos títulos adicionais que nos poderia ter dado mas tornando-se o nosso símbolo perene. Ao morrer, tão jovem e brutalmente, tornou-se imortal.

Nascido em 30 de Janeiro de 1908, Pepe foi um dos primeiros grandes ídolos do futebol português, talvez mesmo o primeiro de todos. Impôs-se muito jovem no Belenenses e na Selecção Nacional. Já aqui falámos da sua estreia na primeira categoria do Belenenses, aos 18 anos, marcando o golo decisivo de uma grande vitória e de uma recuperação espectacular. Nesse mesmo ano, ele e o Belenenses conquistaram o seu primeiro Campeonato de Lisboa, à sétima tentativa; no ano seguinte, o seu primeiro Campeonato de Portugal.

A estreia na selecção nacional seguiu-se rapidamente, fixando-se como titular. Em 4 anos, registou 14 internacionalizações e marcou 7 golos por Portugal. Logo em 1927, com 19 anos, numa das vitórias contra a França, os dois golos da sua autoria e uma exibição magistral, levaram os portuenses a transportá-lo em ombros (nesse jogo, participaram ainda 3 outros jogadores do Belenenses: Augusto Silva, César de Matos e Francisco da Silva Marques). Teve uma magnífica participação nos jogos olímpicos de 1928. Ribeiro Reis, benfiquista e um dos fundadores do jornal A Bola, era insuspeito no que escreveu: “Pepe era o nosso avançado mais eficaz e produtivo. Concebia e executava as suas jogadas com uma rapidez fantástica. Artífice máximo das vitórias do seu clube e de muitos triunfos nacionais pelo seu remate pronto e poderoso”.

De glória em glória, estrela mais cintilante do Futebol Azul e Lusitano, em apenas 5 épocas, Pepe tornou-se o melhor marcador em todas as edições do Campeonato de Lisboa, assinando 36 golos, nos 14 jogos da edição de 1929/30. Nessa época, o Belenenses marcou 77 golos, a melhor marca de qualquer equipa em todos esses Campeonatos. Pepe chegou ao record de golos marcados num só jogo oficial, record que subsiste até hoje, 85 anos volvidos, ao marcar 10 golos na vitória do Belenenses por 12-1 sobre o Bom Sucesso. Foi duas vezes campeão de Portugal e 3 vezes Campeão de Lisboa.

É claro que hoje em dia, jornalistas ignorantes e aferrados só a certos clubes, desconhecem e desprezam todas estas coisas. Quando confrontados, remetem estes feitos para o domínio de tempos “pré-históricos”, “arqueológicos”. É claro que as medidas variam ao sabor das conveniências: as Torres de Belém são arqueológicas mas os seus contemporâneos Violinos são actualíssimos; Matateu é pré-histórico, contudo Peyroteo (uma década antes) e Eusébio (uma década depois) são pós-modernos… E nisto, novamente, não vai nenhuma, nenhuma mesmo, desconsideração por Eusébio ou pelos Cinco Violinos mas, apenas, um clamor de justiça, de igualdade de tratamento.

Por isso, continuemos: na normalidade das situações, Pepe teria ainda à sua frente 10/12 anos de carreira. Os Campeonatos Nacionais, iniciados em 34/35, passaram a substituir os Campeonatos de Portugal para determinar o melhor, o campeão do nosso País. Teria sido normal que Pepe tivesse disputado 8, 9, 10 Campeonatos Nacionais. Quantos títulos o conquistado com ele? Que força e popularidade decisivas e talvez imparáveis para o futuro, o Belenenses não teria alcançado? Quão diferente teria sido o curso da história, para o nosso clube, e para outros?

A morte de Pepe, assim, foi não apenas uma tragédia pessoal mas também clubística. Em 95 anos de Belenenses, houve muitos momentos tristes; vários grandes jogadores desapareceram ou terminaram prematuramente a sua carreira – não somente Pepe mas, entre outros, José Simões, Mariano Amaro, Benitez (de quem se dizia ser ainda melhor que Di Pace!) e Carlos Serafim. Ficámos sem as Salésias e, durante muitos anos sem o Restelo. Mas dois dias fatídicos moldaram o nosso destino: 24 de Abril de 1955 e 24 de Outubro de 1931. Nesta data, no meio de dores horríveis, provocadas por envenenamento (que deu azo a muitas especulações), Pepe deixou este mundo.

Homero Serpa, um grade Belenenses, escreveu um notável artigo sobre Pepe (A Bola Magazine, nº 12, Maio de 1988), de que, com o devido respeito, transcreveremos vários excertos:

“No dia 24 de Outubro de 1931, no Hospital da Marinha, para onde tinha sido transportado na véspera em estado grave, faleceu um moço de 23 anos, operário das oficinas da Aviação Naval, jogador internacional do Clube de Futebol ‘Os Belenenses’, figura inconfundível de homem e de desportista – chamava-se José Manuel Soares, o ‘Pepe’.

Pepe deixou indeléveis recordações nos companheiros, nos adversários e em todos os adeptos do futebol. Deixou também a mística do seu nome e da sua acção em campo ligados a um outro misticismo, que foi o célebre ‘quarto de hora à Belenenses’, que a história do grande jogo regista em letras azuis. Talvez porque Pepe foi figura central de um desses quartos de hora, quando o Belenenses, em 28 de Fevereiro de 1926, no Campo das Amoreiras, culminou a recuperação de 1-4 contra o Benfica, marcando, no minuto derradeiro, o golo da vitória do seu clube. Houve festa na ‘aldeia’ de Belém, tão grande foi essa tarde, como enorme foi a dor da população belenense quando pouco mais de cinco anos passados sobre o feito de Pepe, o acompanhou ao cemitério da Ajuda.

(…) Pepe sobrevive ao tempo que caminha e destrói a memória dos homens. Pepe resiste porque ele simboliza o velho Belenenses erguido por gente da praia, por homens modestos, que viviam no bairro operário e levaram para o seu clube a têmpera de quem sabe quanto custa a vida e quanto esforço é preciso para a enfrentar e vencer. Por isso, a camisola azul dos Belenenses não está ligada apenas ao mar em estreita ligação com a Cruz de Cristo, que de Belém saiu a bordo das caravelas, mas ao fato de ganga, também azul, e que Pepe vestiu mais vezes do que o equipamento do seu clube” [trabalhava como torneiro].

(…)

Apenas durante cinco anos, foi o ídolo dos belenenses e o temido mas respeitado adversário dos outros clubes. (…) Assistiu ao crescimento do seu clube. Viu-o passar do Campo do Pau do Fio para as Salésias, facto importante que aconteceu em 29 de Janeiro de 1928. Acompanhou-o das acanhadas instalações da Rua Vieira Portuense para uma sede condigna na Rua da Junqueira. Ajudou a projectar um simples clube de bairro, que tivera um princípio agitado e, também, contrariado.

Na época de 31/32, o Belenenses voltou a conquistar o título de campeão de Lisboa. A fotografia comemorativa do feito mostra os jogadores com o sinal de luto nos braços. Neste mesmo ano, foi inaugurado nas Salésias, durante as comemorações do aniversário do Clube, o monumento a Pepe, transferido para o Restelo quando o Belenenses foi obrigado a abandonar as Salésias, facto que encerra um ciclo brilhante da vida da colectividade belenenses, fundada e sublimada por homens com a estatura de José Manuel Soares, um dos rapazes da praia”.

Ainda no mesmo artigo, Homero Serpa entrevistou alguns belenenses que tinham conhecido o Pepe, entre eles o Sr. Idalino Cotovio, ao tempo daquele artigo (1988), o sócio nº 160 do clube. Entre outras coisas, declarou o Sr. Cotovio:

“A morte dele? Um horror. Creio que toda a gente que o conhecia chorou esse momento trágico. Ninguém imagina a consternação que caiu sobre o bairro, o Pepe era um menino querido”

(…)

“Grande jogador. Uma vez o Belenenses foi jogar a Setúbal e empatou 1-1. O Pepe não foi por estar lesionado (…). Nessa altura havia que desempatar no espaço de 24 horas, e o Pepe não resistiu, foi mesmo jogar e o Belenenses ganhou por 2-0. Foi ele que, mesmo ao pé coxinho, deu alma à equipa, deu-lhe alegria e valor. Tenho 63 anos de associado do Belenenses, e nunca esqueci essa grande jornada”.

(…)

Nunca assisti a um funeral tão imponente e sentido. As pessoas choraram o Pepe como se ele fosse filho de todos quantos o acompanhavam. Já o tinham sepultado num jazigo da Câmara Municipal de Lisboa no Cemitério da Ajuda e ainda havia gente na Rua da Junqueira” [nessa multidão, contavam-se admiradores de outros países, como o celebérrimo guarda-redes Espanhol, Zamora]

E terminava Homero Serpa: “Fomos buscar ao passado uma das horas mais trágicas do desporto – a morte de Pepe, o menino querido de Belém, o jogador invulgar que empolgava as multidões e criava simpatia entre os adversários, mesmo quando dava a vitória ao seu clube ou à selecção nacional. Desapareceu há muito tempo mas a sua imagem e a sua história comovente têm atravessado incólumes as gerações, porque os homens antigos entregam aos novos o testemunho da sua admiração por um moço paupérrimo que nasceu em Belém e morreu aos 23 anos, deixando para a eternidade o misticismo que cria e alimenta as lendas”.

Em 1932, por subscrição nacional, foi erigido nas salésias o monumento de homenagem dos desportistas Portugueses a Pete, depois, naturalmente, transferido para as Salésias. O Belenenses deu o nome do malogrado desportista ao Campo das Salésias e continuou a honrar Pepe até aos nossos dias. E ainda bem que o fez!

Um clube com a história, as lendas, as tradições, as figuras e as incontáveis páginas escritas a letras de ouro, como o Belenenses, tem de ser digno da sua grandeza!

JMA + VG + NG