Foi um jogo, uma tarde, uma vitória inesquecível. Temos sinceramente pena de há muito não vivermos uma coisa assim – e, mais até, o receio de que não se volte a repetir. Temos pena que muitos dos mais jovens não tenham tido a ventura de assistir, pois, muito provavelmente, pensariam e sentiriam de maneira diferente o que é o Belenenses.
Não nos referimos tanto à vitória. Noutros tempos, tivemos vitórias mais substanciais diante deste mesmo rival. E mesmo há uns poucos anos atrás lhe ganhámos mais folgadamente. Mas a vibração, o empolgamento, a sensação de plenitude não se pode, nem de longe nem de perto, comparar. Falta o ambiente de um estádio muito mais que cheio – a transbordar por todos os lados; falta o clamor de dezenas de milhar de adeptos do Belenenses; falta a maneira como os jogadores festejavam os golos, sobretudo o último: em cachos, todos juntos entre si, e todos juntos com o povo Azul. E falta a mística que se perdeu, a esperança, o frisson, a alegria da liderança…tanta coisa,tanta coisa!
Mas vamos contar “tudo” desde o início. O campeonato de 75/76 iniciou-se com uma equipa moralizada, vitoriosa na Taça Intertoto, que recuperara uma coerência e um fio de jogo (mérito de Peres Bandeira), que compensara muito bem a saída de Quinito com a entrada de Vasques e que recebeu um Artur Jorge ainda em condições de marcar bastantes golos, de voltar à Selecção A e de ir ganhar uns bons cobres nos Estados Unidos da América, por deferência do nosso clube. Praticamente estivemos sempre nos três primeiros lugares, e grande parte do tempo no 2º lugar. E, aliás, à 6ª jornada, no dia 12 de Outubro de 1975, chegámos mesmo ao 1º lugar, com o Belenenses a viver um dia inesquecível.
Recebemos o Benfica no Estádio do Restelo, emoldurado com uma multidão verdadeiramente impressionante. As rádios, a televisão e os jornais falaram na presença de 60.000 espectadores! EXACTO, SESSENTA MIL! Podemos confirmá-lo documentalmente confirmar documentalmente, através de excerto da “Bola” (nº 4494, de 13 de Outubro de 1975, página 5), que se reproduz em seguida (ver também gravura): “CASA CHEIA, COM GENTE POSTADA EM TODOS OS SÍTIOS POSSÍVEIS, com muita borla e alguma inconsciência. Alberto Mesquita, secretário-permanente do Belenenses chegou a manifestar-nos os seus temores pelo exagerado número de pessoas penduradas no quadro onde se anotam os resultados do Totobola, chamando-nos, também, a atenção para um assistente que se encontrava no topo duma das torres de iluminação. Mais tarde, viríamos a saber que a receita deverá rondar os 1.400 contos, para mais e não menos, pois os cálculos aproximados conduzem àquela conclusão. Todavia a receita não está de acordo com o número de pessoas que assistiram ao encontro pois, a determinada altura, entrou muita gente sem pagar qualquer bilhete. Apesar disso, julga-se que teriam estado no Estádio do Restelo CERCA DE 60 MIL PESSOAS”.
Não sabemos exactamente se teriam estado 60.000 pessoas, 55.000, 50.000 ou até 70.000 como num meio de comunicação social chegou a ser aventado; mas certo, seguríssimo, é que se tratou de uma multidão compacta, de uma assistência gigantesca e tonitruante.. E, tendo em conta que as bancadas transbordaram a ponto de algumas ténues vedações cederem aqui e acolá, que o Topo Norte estava cheio até aos pilares onde, desde há cerca de dois anos, assenta a cobertura, com a zona de acessos, o marcador do totobola e até os terrenos acima cheios de gente (inclusive as torres de iluminação!), tendo em conta que a lotação do Estádio era então superior a 40.000 pessoas (a capacidade oficial do Restelo era de 44.000 pessoas) não custa acreditar que, no mínimo, tenham estado presentes bem para cima de 50.000 pessoas.
O mito de um Restelo quase sempre deserto é recente, e muito mal fazemos ao alimentá-lo. É também falso que o nosso Estádio nunca esgotou a sua lotação. Falaremos disso em artigo futuro mas aqui fica desde já a nota: o Estádio do Restelo esgotou a sua lotação pela primeira vez no dia 1 de Fevereiro de 1959.
Neste 12 de Outubro de 1975, vivemos uma tarde de glória, com o Belenenses a triunfar por 4-2, depois de um jogo espectacular. Vale a pena recordar a marcha do marcador:
* Aos 15 minutos, Belenenses, 1 – Benfica – 0. Livre do lado esquerdo do nosso ataque, marcado por Gonzalez, e Pietra a marcar de cabeça.
* Aos 32 minutos, 1-1, por Jordão.
* Aos 45 minutos, 2-1 para o Belenenses: Gonzalez marca canto do lado direito, Artur Jorge amortece de cabeça, e Vasques surge a marcar com um espectacular pontapé de bicicleta.
* Aos 49 minutos, 2-2, por Néné.
* Aos 59 minutos, Belenenses, 3 – Benfica – 2, com golo de Vasques, na sequência de canto apontado por Gonzalez e de um primeiro remate de Artur Jorge. A bola sobrou para Vasques que, no bico da grande-área, no lado direito, embora usando o seu pior pé (o esquerdo), arrancou tiro portentoso, que entrou no canto esquerdo da baliza de Bento,
* Aos 90 minutos, 4-2 para o Belenenses. Grande jogada de Pietra, a driblar vários jogadores e a entregar a Artur Jorge que rodopiou, evitou um defesa encarnado, e atirou colocado ao canto esquerdo.
E o jogo – um grande, um espectacular jogo! – terminou em euforia azul, com invasão de campo, Vasques e Artur Jorge carregados em ombros. Que tarde maravilhosa! E que diferente era o Belenenses de então (e até então, sempre!), que, no seu estádio fosse contra quem fosse, e ganhasse ou não, era quem detinha a iniciativa do ataque, quem ia à procura da vitória, quem tinha a maioria dos espectadores. Repito, fosse contra quem fosse, e sempre! Logo a seguir, nas duas ou três épocas seguintes, as coisas iriam mudar…
Como temos saudade, como desejamos voltar a celebrar um triunfo desses, que nos coloque lá no topo, com o estádio, nesses minutos finais, a ser todo “nosso”, depois de uma vitória a jogar ao ataque, depois de pormos em respeito os outros grandes, com a equipa e todos os beléns a serem um só, cheios de orgulho, de élan e de alma!
Falámos há pouco na “Bola”. Vale a pena referir que, num dos títulos da crónica desse jogo (na qual era repetida a referência a 60 mil espectadores), se podia ler:
“Olha lá, BELENENSES… E se lutasses pelo Título?”
E, entre muitas outras afirmações enfáticas sobre a valia do Belenenses, escrevia Santos Neves: “(…) Belenenses que acaba de ‘apanhar’ o Benfica e com ele (e com o Braga e o Boavista) passa a repartir o 1º lugar. E agora, Belenenses? Olha lá, Belenenses… e se lutasses pelo título? …Exagero?… Vamos lá a ver que exagero? Porquê exagero?”. E seguia-se uma descrição pormenorizada da força e do mérito da equipa do Belenenses.
* * *
Não chegámos ao título, como se sabe; mas, apesar da oscilação de forma que houve durante a 1ª metade da 2ª volta, assegurámos um 3º lugar no final. Repare-se que, no Restelo, vencemos o Benfica por 4-2, e o Sporting e o F.C. Porto por 1-0. De resto, em casa, não registámos nenhuma derrota e somente cedemos 3 empates. Em 15 jogos, marcámos 27 golos e apenas sofremos 6. Nos jogos fora, a carreira não foi tão boa mas, por exemplo, empatámos 1-1 no Estádio da Luz. Fomos, aliás, a única equipa que não perdeu com o campeão Benfica – e mais do que isso, a ter um saldo positivo, com uma vitória e um empate, e 5-3 em golos.
JMA