Este Homem bom, simples, modesto e afável, que é Vicente Lucas da Fonseca, não gosta de afirmações sensacionalistas acerca de si (e quantos, com muito menos valor, a buscam doentia e artificialmente…). Mas a verdade manda que se diga: Vicente é, na opinião de muitos, a maior figura viva do Belenenses (sem desprimor para Georgete Duarte, que lhe é de certo modo comparável). E é uma lenda não só do nosso clube, como do futebol português e mundial.

Por todas estas razões, ao completar 79 anos neste 24 de Setembro de 2014, Vicente Lucas da Fonseca merece a maior homenagem de todos os belenenses – e, já agora, de todos os que valorizam a memória histórica, o desportivismo, a correcção, a nobreza de carácter e o valor futebolístico.

É curiosa e significativa esta data de 24 de Setembro. O aniversário de Vicente é logo no dia seguinte ao do Clube de Futebol “Os Belenenses”, como que simbolizando a ligação do moçambicano com o nosso clube (desde há 59 anos!) e a importância que nele teve e tem. E, adicionalmente, como vimos em artigo anterior, o seu grande irmão Matateu tivera a sua estreia oficial em dia de aniversário do Belenenses (em 1951) – e que estreia!

Quando Vicente chegou a Portugal, para o Belenenses (graças à diligência de outra imensa figura “azul”, Francisco Soares da Cunha), em 30 de Julho de 1954, com apenas 18 anos, já Matateu era um ídolo de primeira grandeza – mais um elo na cadeia dourada de jogadores do Belenenses que foram os melhores de Portugal do seu tempo, por um espaço de 40 anos: Artur José Pereira, Augusto Silva, Pepe, Mariano Amaro, Matateu… Com o seu talento quase sobre-humano, que o faz um dos candidatos a “o melhor jogador Português de sempre” e uma estrela mundial –, já se impusera totalmente nos campos portugueses (e não só).

Por isso, os jornalistas que esperavam Vicente, naturalmente lhe chamaram “Matateu II”, esquecendo que o Matateu I afirmara que Vicente era ainda melhor que ele. No entanto, logo se depararam com a resposta: “Matateu II, não! Eu sou o Vicente”, como quem diz “quero mostrar o meu próprio valor”!

E como o mostrou! Durante uma dúzia de anos, sempre no Belenenses ou na Selecção Nacional, impôs-se à admiração e consideração gerais. Jogador elegante e de fina técnica, com impecável sentido posicional, começou como médio de sentido atacante – marcando logo o golo da vitória sobre o F. C. Porto na sua estreia oficial – e foi depois recuando para funções mais defensivas, onde obteve a maior consagração. A sua capacidade de marcação e de antecipação fez popularizar a frase, tantas e tantas vezes repetida, “corta Vicente”.

Nessas doze épocas ao serviço do Belenenses, teve treinadores de renome como Fernando Riera, Helénio Herrera, Fernando Vaz ou Otto Glória.

Defrontou, muitas vezes em tardes e noites de glória, equipas da grandeza e do prestígio do Real Madrid e do Barcelona, do Milan e do Roma, do Valência e do Sevilha, do Stade de Reims (então finalista da Taça dos Campeões Europeus), do Burnley (então campeão inglês), do Newcastle (idem), do Panahtinaikos, do Hibernian, do Dínamo de Zagreb, do Santos, do Vasco da Gama, do São Paulo…e jogadores marcantes da história do futebol mundial, como Pelé (que fez a sua estreia nos Seniores em jogo com o Belenenses!), Di Stéfano, Kopa, La Fontaine, Kubala e tantos outros… Quando o Belenenses defrontou o Real Madrid e o Milan em Paris, em Junho de 1955, na Taça Latina, escreveu-se no “France-Football”: “Não terminemos sem rever o comportamento de um elemento do Belenenses que confirmou toda a sua classe, o médio-esquerdo Vicente Lucas, o irmão de Matateu. Que actividade! Quer estar em toda a parte ao mesmo tempo. Ele é tão bom na defesa como no ataque. Com um estilo de uma ‘souplesse’ magnífica, efectua um ‘vai-e-vem’ contínuo.
Com 19 anos, Vicente Lucas é, sem dúvida alguma, um dos melhores médios europeus”.

Nos Campeonatos Nacionais, actuou em 284 jogos e conquistou dois 4ºs lugares, quatro 3ºs lugares e um 2º lugar – o do dramático Campeonato perdido a 4 minutos do fim, em 1955. Não foi esse o único Campeonato que o Belenenses esteve quase a ganhar no tempo de Vicente; também lutámos palmo a palmo pelo título em 58/59. (É uma falácia a ideia que às vezes se pretende transmitir, por ignorância ou outras razões, de que o Belenenses ganhou um Campeonato quase por acaso. Essa versão é uma autêntica falsificação dos factos. Durante décadas, o nosso clube lutava sempre pelo título. Foi Campeão de Portugal três vezes. Nos Campeonatos Nacionais, esteve perto do título uma boa dúzia de vezes, tendo chegado por 6 vezes à última jornada em posição de o conquistar). Da mesma forma como viveu a transição das Salésias para o Restelo (em cujo jogo inaugural participou), Vicente acompanhou a fase em que o Belenenses passou de crónico e assumido candidato ao título, para um registo mais discreto, adveniente das dificuldades financeiras provocadas pela construção e perda do Estádio do Restelo.

Mas também houve conquistas azuis no tempo de Vicente. Em provas oficiais, destaca-se a Taça de Portugal de 1960, em cuja final o Belenenses bateu o Sporting por 2-1. Foi Vicente quem recebeu e ergueu o troféu, para júbilo dos adeptos azuis. Com efeito, era ele o capitão da equipa, apesar de ter só 25 anos, o que é bem elucidativo do seu carácter.

Nas três épocas seguintes, o Belenenses quase que voltou à Final desta prova mas baqueou sempre nas meias-finais – num caso, apenas num 3º jogo de desempate.

Na altura foram também muito importantes as Taças de Honra ganhas pelo Belenenses em 59/60 e 60/61. Era uma prova oficial disputada muito a sério. Na de 60/61 teve grande relevo o triunfo do Belenenses sobre o Benfica por 5-0. É verdade que tivemos outras vitórias por números idênticos sobre os encarnados; mas este foi logo sobre um Benfica que, 8 meses depois, ganharia a Taça dos Campeões Europeus.

Em competições europeias (Taça Latina e Taça Uefa), Vicente disputou 14 jogos.

Na Selecção Nacional, viveu igualmente momentos extraordinários. Representou a Selecção A por 20 vezes. É o 3º jogador do Belenenses com mais internacionalizações, a seguir a Matateu (27) e Augusto Silva (21). Depois de Vicente, vêm Mariano Amaro (19), Serafim (18) e César Matos (17). Hoje em dia, estes números podem parecer algo escassos para tão grandes jogadores mas não o eram para a época: havia menos países, as deslocações eram muito mais difíceis, as fases de qualificação ou finais de Mundiais e Europeus implicavam muito menos participantes e/ou jogos. Talvez ajude a dar uma ideia de grandeza o lembrarmos que, com os seus 21 jogos, Augusto Silva foi o mais internacional dos jogadores Portugueses durante 16 anos!

No Mundial de 1966, Portugal obteve a sua melhor classificação de sempre, o 3º lugar, com o país vibrar de entusiasmo. O Belenenses era o 3º clube mais representado, entre 20 jogadores, com José Pereira (o “Pássaro Azul”) e Vicente. Este, logo no 1º jogo, foi um dos esteios do Onze Nacional, ao anular a grande estrela da Hungria, Bené. Sobre a exibição de Vicente contra a Hungria, escreveu-se: “Uma das grandes exibições da equipa” (Diário Popular); “É de elementar justiça salientar os que realmente se distinguiram: Eusébio, Vicente e Carvalho” (O Século).

Melhor ainda faria diante do Brasil, “secando” completamente Pele (o melhor jogador mundial de todos os tempos), e com inexcedível subtileza e correcção. Incapaz de fazer algo com Vicente, o astro brasileiro foi para a extrema esquerda, onde provou o jogo mais duro de Morais (o do famoso “canto”, que representava o Sporting mas que declarou que toda a vida foi adepto do Belenenses). Bem que o grande capitão Mário Coluna avisou Pele (a quem já tinha atingido com dureza): “cuidado que o Morais tem maus fígados!” e “vai mas é fazer as malas”. E Pelé, que começara por ameaçar Morais “parto uma perna em você”, acabou a partida sem honra nem glória e com as pernas algo massacradas – mas não por Vicente.

Contamos estes episódios, típicos do que se passa em campo em jogos de grande intensidade, pela sua graça. Antes e depois disso ficou a amizade entre todos estes jogadores. Aliás, Pelé várias vezes afirmou a sua admiração por Vicente e até a sua estima pelo Belenenses!

Não foi a 1ª vez que Vicente anulou “o rei” como nenhum outro jamais o fez. Por exemplo, já em 1963, na 1ª vitória de Portugal sobre o Brasil, a exibição de Vicente mereceu o seguinte comentário no jornal A Bola (que o considerou o melhor em campo): “Sessenta mil pessoas viram, com os seus próprios olhos, como Vicente conseguiu transformar um ‘rei’ num ´plebeu’, converter um ‘fenómeno’ num jogador vulgar, impedir que Pelé fizesse pingar, ao menos uma vez, sobre o relvado do Jamor, um fio de luz do seu decantado (e real) génio futebolístico. (…) foi isso mesmo que aconteceu: Pelé não lhe ganhou uma única jogada. (…) Outros têm procedido de outra forma e foram esmagados. Ele procedeu assim e esmagou Pelé”. Por sua vez, lia-se no “Diário Popular”: “Vicente, em atenção em Pelé, confirmou as suas duas exibições anteriores com impressionante naturalidade, tão bem ele entrou em acção em oposição ao famoso jogador. (…) Haverá pela Europa tantos Vicentes?”. Até um conceituado locutor e comentador brasileiro não resistiu a dizer: “Quem veio para ver o ‘Rei’ Pelé, ‘viu’ Vicente!”. O próprio Pelé afirmou na altura sobre Vicente: “Fez uma excelente exibição. Aliás, uma exibição à altura da categoria que tem”.

Infelizmente, lesionado, Vicente não pôde alinhar no jogo decisivo para chegar à final daquele Mundial. Portugal perdeu 2-1 com a Inglaterra e ficou sempre a interrogação: se Vicente tivesse jogado, não teria “metido no bolso” Bobby Charlton, possibilitando a presença lusa na final?

Terminado a competição, a fama de Vicente tinha-se elevado a grandes alturas. O prestigiado jornal inglês Daily Mail considerou-o “o defesa mais fino do futebol Mundial”. Eis outra curiosidade: Vicente estreara-se na festa de despedida de Feliciano, que um dia foi considerado “o melhor defesa da Europa” pela imprensa francesa. Era a tal cadeia dourada de grandes jogadores do Belenenses.

Com 30 anos, pareceria que Vicente tinha mais 4/5 épocas ao mais alto nível para dar ao nosso clube e à Selecção. Mas o destino não quis que assim fosse. Logo no início da época seguinte, em 7 de Outubro de 1966, sofreu um acidente de viação que lhe fez perder uma das vistas. Era o fim da sua carreira. O infortúnio atingira brutalmente Vicente e o Belenenses, clube-mártir que uma vez mais perdia precocemente um dos seus maiores jogadores e, assim, grande parte da força como equipa: foi Pepe, foi José Simões, foi Mariano Amaro, foi Benitez, foi Vicente… e, mais tarde, Carlos Serafim ou Seba.

Nesse momento, Vicente pôde constatar como era tão generalizadamente querido. Uma imensa onda de carinho e solidariedade se gerou à sua volta. Jogadores de outras equipas (além, claro, dos colegas), visitavam-no em massa. O próprio Pelé lhe escreveu.

Como corolário, em 22 de Janeiro de 1967 teve lugar a sua Festa de Homenagem, sob o lema “Vamos dizer a Vicente que vale a pena ser bom”.

No Restelo, juntaram-se, para dois jogos, os quatro principais clubes lisboetas: além do Belenenses, o Benfica, o Sporting e o Atlético. Mas, na verdade, a homenagem estendeu-se de Norte a Sul do país, com a disputa de mais 22 Taças Vicente Lucas. Assim, também tiveram lugar jogos em Aveiro, Castelo Branco, Évora, Famalicão, Faro, Guimarães, Leiria, Santarém, Porto e Setúbal. Foi uma consagração nacional ímpar, reveladora do prestígio e estima de que beneficiava Vicente (e, afinal, também o Belenenses). Alguns anos mais tarde, houve nova festa de homenagem, desta vez em organização exclusiva do Belenenses.

Em 1974, Vicente tirou o curso de treinador. Após passagens por outros clubes, veio treinar os Infantis do Belenenses em 1981. Depois, nos seniores, foi adjunto de vários treinadores, como Jimmy Meliá ou Henry Depireux (e, pontualmente, treinador principal, em momentos de transição). Como Adjunto de Depireux, em 85/86 foi à Final da Taça de Portugal, e no ano seguinte viu o Belenenses liderar várias jornadas o Campeonato e voltar a classificar-se para as taças europeias, apesar das muitas adversidades com que se deparou, incluindo os pontos perdidos no “caso Mapuata”.

Em 1990, voltou a treinar na formação do Belenenses, explicando: “Gosto muito de trabalhar com miúdos e acho que tenho jeito. E, como estou no ‘meu’ Belenenses e os miúdos também gostam de mim, considero-me um homem feliz…”.

Essa felicidade é algo que Vicente merece completamente.

Quanto a nós, como belenenses, sentimo-nos felizes, muito orgulhosos e profundamente honrados por ele ser do nosso clube, por ser um símbolo perene do nosso grande Belém.

JMA